Uma luz na solidão da noite
Todo ano era a mesma sensação de vazio, uma angústia inexplicável, mas sentida como algo que dilacera até a alma.
E dessa vez, o impacto era bem mais dolorido, pois a solidão estava impregnada em sua existência.
Mas, depois de tudo o que ocorrera naquela noite, com certeza, sua vida não poderia ser mais a mesma.
Tinha muitos outros bens, pois era um homem rico.
Nada veio de herança, mas de muitos anos de dedicação na construtora que um dia decidiu abrir com a cara e a coragem.
Vivia com muito conforto, mas era um homem sinceramente bem intencionado.
Havia se separado da mulher há um ano, mais ou menos, e desde então, optou pela solidão, não queria se arriscar em um novo relacionamento como aquele.
Aprendeu muito com os vinte e cinco anos de casamento e não queria viver tudo novamente.
Passou bons e maus bocados com a esposa.
Uma doce pessoa que se transformara numa megera com o passar do tempo.
Resistiu até onde deu, depois não teve outro remédio senão a separação.
Era muita desilusão.
E pela primeira vez, os dois resolveram curtir o inverno europeu, ver de perto a tão decantada neve.
Parecia feliz, ao menos não o atormentava mais, como nos primeiros meses após a separação.
Rumores indicavam que o caso vinha de longa data.
Num estalo, sem mais nem porque, resolveu sair de casa, queria respirar, mesmo com toda a poluição da metrópole.
Desejava liberdade.
O calor estava intenso, chegava a sufocar.
Colocou camiseta, bermuda, tênis e pegou a bicicleta que comprou no mês anterior numa loja de produtos importados.
Não levaria o celular, queria sossego.
Na carteira, apenas os documentos e uma pequena quantia em dinheiro, pois em caso de algum imprevisto seria preciso pegar um táxi.
As ruas estavam movimentadas, luminosos piscavam no comércio ainda aberto, pois era época de compras.
As pessoas iam e vinham apressadas, carregadas de sacolas, como se viessem e fossem a lugar nenhum.
Ele não se incomodou, muito pelo contrário, pois aquele frescor molhado era muito bem-vindo.
E foi ao fazer a curva, dobrando uma esquina, que ocorreu o inesperado.
A bicicleta derrapou e ficou descontrolada, numa fração de segundos percebeu que iria bater com a cabeça em um poste.
Não tinha como escapar.
Mas, do nada surgiu uma mão firme que parou e segurou a bicicleta, evitando assim uma queda que poderia até ser fatal.
A primeira sensação foi de repulsa, queria se desvencilhar dele e seguir adiante, mas o olhar silencioso daquele homem o incomodou e ele ficou sem ação, permanecendo estático ali na beira da calçada.
Sequer conseguiu ao menos balbuciar alguma palavra de agradecimento.
Logo o mendigo soltou a bicicleta, nada falou nem pediu, apenas lançou um último olhar e se foi debaixo da chuva miúda com um plástico sobre a cabeça.
Ele pensou em dizer que não tinha, mas sem nada falar decidiu dar o dinheiro que havia reservado para o táxi, afinal, poderia muito bem ir embora de bicicleta.
A garota, toda feliz, saiu sorridente, correndo descalça entre as pessoas.
Ao pensar no mendigo, se lembrou que não havia sentindo nenhum odor desagradável, aquele mendigo não cheirava mal; algo bem característico nessa classe de pessoas marginalizadas pela sociedade devido às condições de abandono sob marquises, viadutos e calçadas.
Aterrorizado, obedeceu sem nenhuma reação.
Ele ficou olhando e constatou que os ladrões não passavam de moleques bem crescidos.
Foi aí que percebeu o quanto fora imprudente ao decidir sair pedalando na noite em uma bicicleta importada.
Seria impossível não chamar a atenção.
Aquela aventura só poderia terminar daquela maneira devido ao seu próprio descuido.
Quando o táxi encostou, se lembrou que tinha dado o dinheiro para a menina de rua.
Naquele momento, com a cabeça quente, com os pensamentos se chocando, não vislumbrou outra saída a não ser dispensar o motorista e seguir a pé, mesmo descalço, como aquela garotinha.
Pelo caminho, as cenas de tudo o que ocorreu naquela noite se repetiam em sua memória, mas a imagem que mais se destacava era a do mendigo.
Não fosse aquela chuvinha miúda, com certeza, não teria ido até o fim.
Entrou, sentou-se no banco do jardim e fitou os olhos no céu.
Estaria delirando ou teria mesmo visto uma grande estrela?
Não era imaginação, ela estava mesmo lá no céu, entre tantas nuvens, naquela noite chuvosa.
Sim, já era meia-noite e havia chegado o Natal.
Cessados os fogos de artifício, tentou ainda ver a estrela, mas nada, nuvens agora escuras cobriam todo o céu.
Levantou-se do banco, olhou para todos os lados do firmamento, só escuridão.
Aquele olhar parecia ainda direcionado para ele.
Queria tentar ver a estrela uma vez mais, infelizmente não foi possível, o céu estava todo escuro, mas como num milagre, pôde sentir a sua luz brilhar dentro de si.
Uma leveza nunca experimentada o tomou por completo.
Havia luz em seu olhar!