Velhas feridas

22 Out, 2025 - 14:38
Velhas feridas
Imagem: Pixabay

O Papa Francisco é um profundo conhecedor da alma humana. Compreende muito bem as relações interpessoais. Vou destacar alguns trechos da EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL AMORIS LAETITIA, Sobre o Amor na Família, escrita por Francisco.

Acompanhe atentamente a leitura:

Velhas feridas

239. É compreensível que, nas famílias, haja muitas dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a sua maneira de relacionar-se, porque não curou feridas de alguma etapa da sua vida. A própria infância e a própria adolescência mal vividas são terreno fértil para crises pessoais que acabam por afectar o matrimónio. Se todos fossem pessoas que amadureceram normalmente, as crises seriam menos frequentes e menos dolorosas. A verdade, porém, é que às vezes as pessoas precisam de realizar aos quarenta anos um amadurecimento atrasado que deveria ter sido alcançado no fim da adolescência. Às vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. É um amor insaciável, que grita e chora quando não obtém aquilo que deseja. Outras vezes ama-se com um amor fixado na fase da adolescência, caracterizado pelo confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.

240. Muitos terminam a sua infância sem nunca terem se sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reaparece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer um percurso de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges não funciona bem, antes de tomar decisões importantes, convém assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria história. Isto exige que se reconheça a necessidade de ser curado, que se peça com insistência a graça de perdoar e perdoar-se, que se aceite ajuda, se procurem motivações positivas e se tente sempre de novo. Cada um deve ser muito sincero consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que toda a culpa seja do outro, nunca é possível superar uma crise esperando que apenas o outro mude. É preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do conflito. >>>

Amplio o destaque para algumas orientações do Papa, a respeito da atenção que devemos dar para as feridas não curadas:

"... às vezes as pessoas precisam realizar aos quarenta anos um amadurecimento atrasado que deveria ter sido alcançado no fim da adolescência."

Notamos aqui que pode ocorrer um distanciamento entre a idade cronológica e a idade da maturidade psicológica. Quer dizer: adultos se comportando como imaturos adolescentes. A idade cronológica avança, mas a idade psicológica se mantém fixa no início da adolescência.

"Às vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado em uma etapa onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. É um amor insaciável, que grita e chora quando não obtém o que deseja."

Toda criança é egocêntrica, ou seja, ela se percebe como se fosse o centro de todas as atenções, o centro do universo. Nenê chorou, mamãe chegou, com todo apoio do papai, da vovó, do vovô e demais familiares e bons amigos. E ai de quem não atender imediatamente às necessidades do nenê! Terá que suportar a birra. Tem adulto que se comporta assim, feito criança mimada.

"Outras vezes ama-se com um amor fixado na fase da adolescência, caracterizado pelo confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos."

Eis aqui os principais delírios da adolescência: o delírio da onipotência e da onisciência. O adolescente pensa que pode tudo e já sabe de todas as coisas. Tem adulto que se comporta assim, semelhante a um adolescente mal educado.

"Muitos terminam a sua infância sem nunca terem se sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se."

Ternura cura. A principal terapia que existe é a afetoterapia. Sem exageros, porque a superproteção estraga. Quando não há amor, o vazio deixado gera angústia, insegurança, ansiedade, medo, desconfiança, fragilidade, melancolia, incapacidade de enfrentar as aflições. O jovem ou o adulto então, nessa situação de desespero, facilmente procurará preencher o vazio com as mais próximas e facilitadas propostas de alívio: drogas, prostituição etc. Tudo ilusão, que acaba se tornando, para muitos, um caminho sem volta para o abismo existencial. Curiosidade para o mal pode ser mortal.

"... nunca é possível superar uma crise esperando que apenas o outro mude."

Sem autoconfrontação não há autoconhecimento. Sem autoconhecimento não há autocontrole. Sem autocontrole não há aperfeiçoamento pessoal. Sem aperfeiçoamento pessoal não pode haver melhoria nas relações interpessoais. Desse modo, não haverá luz nem libertação enquanto não curarmos as nossas velhas feridas, através da presença do amor familiar, da direção espiritual, do suporte de alguns especialistas, e especialmente através do sincero desejo da própria pessoa em querer melhorar, em renovar a mente.