Guaxupé, segunda-feira, 29 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Muito além dos tapetes palacianos

domingo, 18 de outubro de 2020
Muito além dos tapetes palacianos

O sol estava escaldante naquele meio-dia e um cidadão de rua descansava à sombra de uma casa, sentado na calçada. Ao seu lado, o filho ajeitava o material reciclável que teimava em cair do carrinho de madeira. Carrinho não, aquilo era mesmo uma carroça. Essa gente tem a vida dura. Mas, era assim que aqueles dois ganhavam as migalhas de cada dia para manter acesa a luz da sobrevivência.
O filho tinha uns 14 anos e morava com o pai num barraco de uma favela da cidade. Não sabia o que era ter mãe, segundo conta seu pai, homem de uns 40 anos de sofrimento às costas, ela morrera assim que ele nasceu. Foi criado pela avó, morta há um ano.
Viviam os dois assim, suando as migalhas que lhe cabiam, catando todo o tipo de material, puxando carroça pelas ruas do lugar. O pai estava sempre tristonho, não gostava de ver o filho ali naquela labuta, fazendo aquele tipo de serviço. Sonhava poder um dia dar condições para ele estudar, mas os anos iam se passando e nada da vida melhorar. Estava arrependido por não ter estudado quando ainda morava numa cidadezinha do interior. Agora, puxa carroça como um burro qualquer. Pois é exatamente isso que faz dia após dia, como um animal se estrebuchando de tanto fazer força para garantir alguns trocados. Aprendeu a ler e escrever, mas não passou disso, não teve condições para ir além, assim ficou à margem, excluído pela velocidade tecnológica do mundo atual.
A tristeza no rosto estampava a desilusão de um farrapo humano num mundo mesquinho e injusto. Às vezes, ousava viajar com os pensamentos e imaginava uma vida mais digna. Logo seus olhos ameaçavam lacrimejar e então despertava para a sua dura realidade.
Estavam os dois ali, no horário do almoço que nunca tinham, pois só iriam comer alguma coisa requentada no barraco, já na entrada da noite.
Enquanto tentava ganhar mais forças para terminar o dia, derramado de cansaço naquela calçada, observava as pessoas que passavam pela rua. O filho estava amarrando alguns papelões no carrinho, quando ele decidiu se levantar para tocar a vida adiante, ou seja, puxar a vida ladeira acima com o seu corpo queimado pelo sol e já estropiado pelo peso da carga que puxa todos os dias. Ao se levantar da calçada, viu se aproximar um homem bem trajado e todo sorridente. Ele lhe entregou um papel com uma foto e um número, disse ser candidato nas próximas eleições e que esperava contar com o seu voto.
O homem, com certeza, não o conhecia, mas o cidadão de rua sabia muito bem de quem se tratava. Era o dono de uma empresa que tinha a fama de explorar os seus funcionários. Se tratava de um homem de nariz empinado que, em campanha eleitoral, se transformara em outra pessoa, um ser aparentemente agradável, embora falso. Bom de bico, estava empenhado em conseguir um cargo político.
Para o cidadão de rua gente assim deita e rola com o dinheiro público. Sujeitos como aquele só buscam altos salários, valores absurdos e incompatíveis pelo que nada fazem em seus inúteis gabinetes. Para o cidadão de rua, os homens públicos indignos pensam exclusivamente em suas contas bancárias.
O homem deixou o santinho em suas mãos e se foi, atravessou a rua com os passos de alguém que se sente como se fosse o dono do mundo, rumo aos seus cifrões preciosos.
Após aquela cena, o cidadão de rua voltou os olhos para si e teve muito orgulho da vida que levava, pois mesmo não tendo nem o mínimo suficiente para sobreviver como um ser humano, algo faz toda a diferença entre ele e aquele político desprezível, pois tem a honradez de contar apenas com o que lhe cabe, mesmo não tendo quase nada. Tomou fôlego, se posicionou na carroça, chamou o filho e seguiu na labuta de carregar o país às costas.
Enquanto políticos inescrupulosos arrasam cidades, Estados e país, o cidadão de rua e seu filho e muitos outros, uma multidão imensurável de farrapos humanos, continuam, honestamente, catando migalhas pelas ruas, rastejando pelas sarjetas. O cidadão de rua segue em frente, animalescamente, puxando carroça dia após dia, muito além das urnas e dos tapetes palacianos.

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