Guaxupé, terça-feira, 30 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Um delicado aceno de vida que brilha

sábado, 10 de outubro de 2020
Um delicado aceno de vida que brilha

As nuvens escuras davam sinal de que o dia poderia ser de chuva. A manhã estava cinzenta, mesmo assim, o velho homem, cansado da vida, decidiu varrer a calçada de sua casa, pois a sujeira da falta de educação das pessoas é diária. Se depender da limpeza pública, a frente de sua residência vira um acúmulo de imundícies.
Estava o bom velhinho varrendo e catando o lixo da sarjeta, sentindo em sua coluna uma dor terrível, como se todo o peso do mundo estivesse sobre suas costas, quando notou que passava pela rua uma mulher com uma criança ao lado.
A menininha, de tenra idade, empurrava um carrinho de boneca. Ao passar por ele, acenou com sua mãozinha um tchauzinho delicado e sorriu toda a sua inocência no rostinho angelical.
Meio sem jeito, ele olhou para aquela que deveria ser a mãe da criança e percebeu que ela falava com alguém ao telefone celular. A mulher estava completamente alheia ao andar da pequena criança; se viesse um carro naquele momento, poderia haver ali um atropelamento.
O homem lançou um olhar de reprovação para a jovem mulher, que demonstrava ser uma mãe desnaturada não segurando a mão da filha em plena rua. Entretida com o telefonema, a mulher parecia nem saber por onde passava e sequer notava o que havia pelo caminho.
Na calçada, agachado, catando embalagens e folhas de propaganda de supermercado, ele voltou novamente os olhos para a menininha, que permanecia acenando e sorrindo num gesto contagiante. Não teve jeito, o semblante sério foi abaixo, caíram ao chão todas as preocupações e as dores deram uma trégua, ele retribuiu o sorriso e o aceno, num tchauzinho meio sem jeito. Sentiu uma leveza indescritível, como se tivesse, por um momento, entrado num mundo diferente, onde não há espaço para máscaras e carrancas.
Sua atitude fez a garotinha feliz, num sorriso silencioso ela demonstrou todos os seus sentimentos de amor e gratidão. Continuou com seus passinhos pisando em nuvens, olhando para trás, sem jamais deixar de acenar e sorrir.
A mulher continuava ao telefone, mas de repente, parou e empurrou a criança, vociferando: Anda rápido, sua lerda! Por pouco aquele pedacinho de gente não foi ao chão. O homem quis reagir, mas ao olhar para a menininha, mudou de ideia, pois ela nem se incomodara com o safanão, continuava firme com o seu aceno e sorriso.
Ele deu o último aceno, um adeusinho, e pensativo, terminou a limpeza da calçada e entrou em casa. Aquela imagem ficou em sua mente.
Pouco depois, saiu à janela e sentiu que os primeiros raios de sol já davam sinal de vida, mesmo que atrasados. As nuvens cinzentas haviam se dissipado e o céu estava limpo, aberto num azul sem fronteiras.
Quando chegou a noite, ao se deitar, a imagem daquela manhã ainda estava bem viva em seus pensamentos. Ao se lembrar do sorriso e do aceno da garotinha, entendeu que a vida é mesmo um milagre e que pode ser bem diferente da maneira como o mundo a deturpa e maltrata.
Já quase dormindo, ainda pensava naquele inusitado encontro. Entendeu, enfim, que por mais que ao redor as nuvens estejam escuras e a violência de plantão, sempre haverá espaço para um gesto de amor e frestas por onde a luz possa entrar.
Então adormeceu como nunca, numa suavidade inexplicável. O velho homem havia sentido o verdadeiro significado da vida.

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