Guaxupé, sexta-feira, 3 de maio de 2024
Rodrigo Fernando Ribeiro
Rodrigo Fernando Ribeiro Psicologia e Você Rodrigo Fernando Ribeiro é psicólogo (CRP-04/26033).

Conflito entre irmãos de fé

terça-feira, 27 de outubro de 2020
Conflito entre irmãos de fé

Já foi falado aqui que a Psicologia das Religiões é um desdobramento de análise do comportamento humano. Neste caso, uma análise do comportamento daquelas pessoas que se consideram pertencentes a alguma comunidade que professa a mesma fé.
É muito comum vermos as históricas disputas entre cristãos, divididos entre católicos e protestantes. Entre os próprios católicos também existem divisões, ou pelo menos certa disputa por identidade. Por exemplo, tem gente que considera a Renovação Carismática Católica (RCC) uma aberração, enquanto outros consideram a RCC uma salutar e necessária corrente de graça que atravessa a Igreja.
Entre os protestantes também existem divisões. São consideradas históricas as Igrejas Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Batista e por aí vai... Depois surgiram as denominadas igrejas pentecostais e neopentecostais, com pastores midiáticos, propondo uma vivência comunitária mais afeiçoada à felicidade pra já, aqui e agora, também mais apegada às conquistas dos bens materiais, fazendo uma espécie de barganha com Deus.
Para os cristãos, Jesus é o Senhor.  Esse é o ponto comum, essa é a convergência. Jesus é o centro da fé. No entanto, com o passar do tempo, ladeando Jesus, aspectos variados foram sendo agregados, criando pontos irreconciliáveis da fé.
O que para uns são desdobramentos (aprofundamentos) da fé, para outros são desvios, invencionices com intenções mercadológicas lucrativas.
Jesus, repito, é o centro da reconciliação. Já os aspectos irreconciliáveis se referem às peculiaridades de cada instituição, tradição, igreja ou comunidade.
Vou citar um único exemplo, o mais comum ponto de divergências entre os cristãos, que é o da marcante presença da figura feminina, da força materna. Vou falar de Maria.
Maria, Mãe de Jesus, esteve presente em três momentos de máxima importância na vida dos cristãos: Encarnação, Mistério Pascal e Pentecostes. Essas três presenças, garantem a Maria um lugar único ao lado de Jesus.
Por isso, desde os primórdios do cristianismo, Maria foi sempre querida, profundamente respeitada, muito amada. Depois da sua partida, passou a ser venerada. E sua grande veneração segue ativa, especialmente na Igreja Católica Apostólica Romana. Em todas as Missas, pregações, homilias, palestras, procissões, retiros espirituais, grupos de reflexão, grupos de oração, estudo bíblico, curso de formação cristã, em todos os Sacramentos, em todas as Cartas Encíclicas elaboradas pelos papas, em todo o Catecismo da Igreja, em todo o ensino do Magistério da Igreja enfim, Maria é sempre mencionada junto de Jesus. O motivo é bastante evidente e contundente: Maria é Mãe de Jesus! Maria esteve sempre unida ao seu filho Jesus. Pelo “Sim” de Maria a humanidade pôde conhecer Jesus! Deus enviou seu Filho Jesus passando por Maria, pelo ventre de Maria. José, o pai adotivo de Jesus, também é sempre mencionado, afinal, protegeu Maria e Jesus, cuidou de ambos. De fato não faz sentido só falar de Jesus e ignorar Maria e José.
Já entre os protestantes, posteriormente autodenominados evangélicos, especialmente nas Igrejas contemporâneas, praticamente não se fala em Maria nem em José nas pregações. O discurso dos pastores e das pastoras é focado em Jesus, e de tanto falarem praticamente e somente em Jesus, é como se Maria e José não tivessem nem existido! Falam de profetas do Antigo Testamento, das mulheres de grande importância e significado, mas ignoram Maria quase que complemente e, quando a mencionam, a consideram apenas uma mulherzinha qualquer. Aqui nota-se uma estratégia: Não falam de Maria, pois sabem da profunda e marcante devoção mariana no Brasil. Só de mencionarem o nome Maria, muitos fiéis ali presentes nas igrejas protestantes pentecostais, poderiam sentir o desejo de sair pra assistir a uma Missa, especialmente quando se tratam daqueles fiéis que vieram da Igreja Católica. Então preferem não mencionar o nome Maria. Nossa Senhora nem pensar! Tal título tem sentido no contexto católico. No ambiente pentecostal é quase um crime usar essa expressão.
Bem... Falei de Maria, mencionei um pouquinho sobre José. As demais diferenças prosseguem. São diferenças tão claras que as aproximações entre os “irmãos em Cristo” de denominações diferentes não raro são dificultosas.
Apesar disso, os convitinhos acontecem... Costumamos ver um fiel protestante convidando um parente ou amigo católico para ir ao Culto, e sem grandes dificuldades nem preconceitos essa pessoa vai lá, ao menos pra ver como é. O contrário já não é tão comum. Se um fiel católico convidar um parente ou amigo protestante (ou evangélico) para assistir à Missa, certamente esse parente ou amigo não irá.
As doutrinas não são exatamente as mesmas. Os sacramentos não são exatamente os mesmos. As orações não são exatamente as mesmas. O ritual não é o mesmo.
A Missa é uma celebração solene de memória ao sacrifício de Jesus Cristo e sua Ressureição. Já o Culto protestante se parece mais com uma apresentação musical de louvores, seguidos de uma palestra ou aula sobre partes das Escrituras Sagradas.
As crenças não são exatamente as mesmas. O ponto máximo de uma Missa, por exemplo, é a Eucaristia, fonte e ápice da fé católica, onde a Igreja ensina que, após a consagração, o pão e o vinho se tornam presença real do corpo, sangue, alma e divindade de Jesus Cristo. O pão permanece com aparência de pão, mas é Cristo; o vinho permanece com aparência de vinho, mas é Cristo. É o mistério da fé denominado transubstanciação, um acontecimento confirmado ao longo dos séculos pelos milagres eucarísticos. Desde os primórdios a Igreja ensinou assim. E continua ensinando assim. Já para os protestantes (ou evangélicos), na Santa Ceia, o pão e o suco de uva apenas simbolizam o corpo e o sangue de Jesus Cristo, cuja mensagem verdadeira é a força da partilha.
Viu só como são sutis as diferenças, mas são diferenças essenciais que, para o fiel convictamente comprometido com sua igreja, de ambos os lados, faz toda a diferença, a tal ponto de não concordar com a outra forma de crença.
E tem mais né: a devoção aos santos e santas como intercessores no Céu (crença católica que os protestantes rejeitam), a fabricação de imagens sagradas (que os católicos usam como veneração, e os protestantes acusam de adoração) etc., etc., etc., fazem parte dos pontos irreconciliáveis da fé, como já mencionei acima.
Sobre essas diferenças, o Papa Francisco propôs uma cultura do encontro, capaz de criar pontes (possibilidades de diálogo respeitoso) e não muros (distanciamentos produtores da fofocas ou maledicências). Francisco foi claro ao reconhecer e valorizar a identidade de cada um ao afirmar que “unidade não significa uniformidade.” Está claro? Católico pode ser amigo, parente, vizinho e irmão de protestante sem ser obrigado a vestir a camisa do protestantismo e vice-versa.
São detalhes demais para enumeramos aqui, e não irei enumerá-los, pois o intuito deste prolongado artigo não é a reflexão teológica, e sim a análise psicológica. Vamos a ela?
Notamos claramente que a proposta de Jesus é comportamental. É a renovação da mente – chamada de conversão na linguagem teológica e insight na linguagem psicológica –, produzindo um novo comportamento, um ser humano renovado na alma, animado, entusiasmado, transformado no coração, promotor da paz, compassivo, um ser humano justo, respeitoso, que se afasta do mal, que não zomba de Deus, que não faz nada que desagrada a Deus.
É esse o tipode conduta que conduzirá o ser humano ao Céu, de acordo com o que disse Jesus especialmente no capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Note que não é a quantidade de orações, não é a frequência ao templo arquitetônico, não é se leu muito ou se leu pouco as Sagradas Escrituras, não é saber citar de cor capítulos e versículos, nada disso. Esse cumprimento de ritos e obrigações institucionais não tem valor nenhum se na prática do dia a dia a pessoa foi fria, raivosa, rancorosa, ingrata, vazia, maldosa, injusta, cruel, indiferente diante de alguém que sofre.
Desse modo, concluímos que Jesus vive onde podemos encontrar um coração fraterno. E pessoa assim, como esse coração fraterno, pode estar tanto na comunidade católica quanto na evangélica, bem como pode não pertencer a nenhuma filiação cristã, pode até ser ateu ou agnóstico, e ter um coração sincero, manifestar palavras e gestos de genuíno amor ao próximo. Isso faz todo o sentido. As demais picuinhas e contendas não fazem sentido algum.

Comente, compartilhe!