Guaxupé, terça-feira, 16 de abril de 2024
Padre Sérgio Bernardes
Padre Sérgio Bernardes Reflexões

Da janela do meu quarto

segunda-feira, 6 de julho de 2020
Da janela do meu quarto Assim como as janelas da casa que permitem observar apenas parte daquele com quem dialogamos, as ferramentas de comunicação possibilitam recortes selecionados do que nos apresentam (Foto: pinterest)

            Há alguns dias, fui surpreendido por uma experiência nova, ficar recluso em casa por cinco dias, seguindo às orientações da agente de saúde que me ligaria nos dias seguintes para verificar se eu havia contraído o coronavírus.
            A primeira atitude foi, obviamente, avisar os contatos, amigos e familiares, que estaria restrito à minha casa, impossibilitado de receber ou fazer visitas. Mas, o que parecia ser uma experiência desafiante se transformou numa experiência restauradora de alívio. Estaria protegido, por um breve período, da ameaça que a rua e o convívio social representam e também em contato obrigatório comigo mesmo.
            É claro que as redes sociais e a tecnologia não permitem um total afastamento dos outros, sempre abrimos janelas para nos conectar com os contatos próximos ou distantes. Porém, mesmo que nos empenhemos em parecer o contrário, o que estabelecemos na comunicação virtual é sempre um recorte específico do que partilhamos com o outro.
            Assim como as janelas da casa que permitem observar apenas parte daquele com quem dialogamos, as ferramentas de comunicação possibilitam recortes selecionados do que nos apresentam. Não dá pra escolhermos o que observamos daquilo que se nos apresenta, está além de nossa decisão, tampouco é possível alterar o nosso local de observação para percebermos outros ângulos. Quem se comunica pelas redes sociais (ou abre a janela de sua casa) determina o que será revelado ou escondido.
            Por mais expostos que sejamos, selecionamos aquilo que pretendemos deixar que os outros observem em nós, ninguém é inteiramente transparente, se alguém se julga ser assim está enganando a si ou aos outros. O que os outros terão de nós, independentemente de qualquer coisa, será um simples recorte, maior ou menor não interessa, mas sempre uma seção de quem somos.
            Voltando à casa, pode parecer uma opinião incomum, mas estar restrito e isolado entre quatro paredes, além de um instrumento necessário para a saúde pública, pode ser um respiro necessário e uma experiência reintegradora. Estar longe dos olhos alheios é algo que nos devolve para nós mesmos.
            Somos especialistas em moldar nossa identidade ao julgamento alheio e tendemos a formatar nossas ideias a partir da relação com os outros, chegando ao ponto de nos confundirmos sobre o que pensamos, o que queremos e até o que somos.
            Ter um tempo exclusivo para nós é a oportunidade de nos refazermos das constantes quebras da vida cotidiana e do impacto das relações humanas, tudo pode nos levar a uma fragmentação profunda, onde podemos nos perder em nós mesmos. Parece estranho, mas apreender-se por alguns momentos, pode ser o caminho possível para a liberdade pessoal.
 
Sérgio Bernardes é padre, jornalista e pesquisador em Teologia Contemporânea.
 

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