Guaxupé, sexta-feira, 19 de abril de 2024
Padre Sérgio Bernardes
Padre Sérgio Bernardes Reflexões

A PAZ QUE EU NÃO QUERO

sexta-feira, 28 de agosto de 2020
A PAZ QUE EU NÃO QUERO O médico e o monstro (Imagem: Divulgação)

Linchamento, destruição de reputação, cancelamento, bloqueios, denúncias, milícias, ameaças, etc. Nos últimos tempos, nos acostumamos a ouvir esses termos bélicos adjetivados de forma dúbia como virtual.
A definição mais popular da palavra é relacionada ao meio eletrônico, o mundo digital construído pela tecnologia humana, porém essa versão é demasiadamente neutra para se problematizar num texto opinativo.
Faço, então, a opção pela segunda via possível, menos comum, mas justamente onde mora o perigo concreto do adjetivo, pois qualifica e direciona os atos mencionados no início do texto. A semântica do termo, ao qual me apego para escrever este artigo, está na interpretação de virtual como algo “que tem a capacidade de existir” ou, ainda, “predeterminado a ser realizado”.
Quis fazer essa distinção preparatória no texto para expor minhas preocupações quanto ao uso dos espaços sociais que ocupamos virtualmente, pois tudo o que é manifesto nas redes se trata de expressões humanas, com possibilidade de tornar-se algo concreto, que impacta e altera a realidade física.
A violência que acontece nas redes sociais, sobretudo, é parte do ser humano que participa e sente-se livre para compartilhar suas ideias de ódio, intolerância e privilégios. Sem falar, é claro, na propagação de notícias falsas que incitam à polarização extremada entre agentes sociais, favorecendo o crescimento de grupos radicais extremos.
Será que esse estágio de virtualidade (compreendido, concomitantemente, como espaço e como atitude) não está gerando algo perigoso demais para nossos tempos e para nossas sociedades? Será que não temos favorecido o aparecimento de nossos demônios nas telas, imaginando que eles sejam inofensivos?
Há uma guerra interna e ininterrupta em todos nós, obviamente afetada por questões externas, mas é esse embate que estabelece as posições e as atitudes que teremos diante das diversas e mutáveis realidades da vida. O conflito só será equalizado no instante da morte, quando cessarmos nossa atividade psíquica e só aí encontrar a paz que almejamos (ou não).
Enquanto isso, resta-nos estabelecer limites e critérios que não favoreçam uma guerra interminável e crescente entre pessoas e grupos com pensamentos divergentes. Evoco aqui um dito famoso inexatamente creditado a Voltaire por sua biógrafa: “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Eu acrescentaria à sentença, ousadia à parte, os parâmetros éticos para que todas as ideias se expressem livremente.
Encerro, literariamente, recordando o clássico “O médico e o monstro” (1885), de Robert Louis Stevenson, com o qual percebemos, na relação psicológica entre doutor Jekyll e o senhor Hyde, a batalha constante entre a virtude redentora e o limite sombrio da existência humana. Vale a pena voltar ao texto e retomar o conflito existencial que marca a narrativa e aponta sua mira para o próprio leitor, fazendo-nos enfrentar nossos anjos e demônios.

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