Guaxupé, sábado, 27 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Vida em pânico e trevas

sábado, 19 de setembro de 2020
Vida em pânico e trevas

As loucuras dos dias deixaram Arlindo com os nervos em frangalhos. Em tudo notava a maldade dos homens: assaltos, assassinatos, sequestros; para onde olhava era só o mal que dominava; líderes religiosos abusando sexualmente de crianças e explorando a fé de incautos fieis; por onde andasse, o domínio era da escuridão, a violência beirava ao caos, morte de inocentes todos os dias; políticos metendo a mão no dinheiro público e empregando a parentalha toda; a corrupção deixou de ser exceção e passou a ser regra, e como que num beco sem saída, o pânico fez de Arlindo uma vítima fácil.
Pelos olhos de Arlindo, o mundo era bem feio, por onde andava não havia nada de lindo.
Ele não suportava mais o avanço do mal e tantas notícias ruins e mau gosto imperando dia após dia. Nos jornais, apenas manchetes negativas; na televisão, só violência e baixarias; no rádio, noticiário desanimador e músicas bregas com letras de baixo calão. O lixo se acumulava por todos os cantos. Arlindo vivia perguntando a si mesmo: não estaria acontecendo nada de bom no mundo?
Abatido, Arlindo resolveu tomar uma atitude radical, não iria ler mais jornais nem revistas, televisão também não assistiria mais e rádio não ouviria de jeito nenhum. Internet, nem pensar! Queria se isolar daquilo que para ele se tornara numa grande imundície. Mas, que nada, não dava para ser uma ilha enquanto vivesse, pois se em casa estava protegido por sua decisão, fora dela era inevitável o contato com o que passou a considerar um grande mal.
Onde tivesse que ir, padaria, loja, barbearia, rodoviária, em quase todos os lugares, sempre havia uma televisão ligada vomitando os seus podres. Fofoca sobre “celebridades” então, um verdadeiro show de horrores! Sem desejar, acabava se inteirando do que ocorria no mundo. E também sentia na pele a maldade ao seu redor, parecia que tudo estava dominado pelas trevas do maligno.
Ele estava cansado de tudo, esgotado mesmo, a vida se tornara um fardo pesado demais para a sua fragilidade de sobrevivente em campo de batalha. Com o mundo assim, com os valores invertidos, onde o mal e o bem se apresentam em posições inversas, Arlindo acabou adoecendo e teve que procurar ajuda médica, algo muito raro em toda a sua vida.
No dia marcado foi ao consultório para tratar dos nervos, no sexto andar de um prédio. Estava sentado numa poltrona, aguardando ser chamado, quando a televisão, no alto da parede, chamou à atenção para o plantão de notícias. A apresentadora, de semblante cinzento, noticiou que uma criança de dois anos havia morrido atingida na cabeça por uma bala perdida, mais uma entre tantas outras vítimas da violência cotidiana.
De todas as más notícias, a que tratava da morte de uma criança por bala perdida era a que mais mexia com Arlindo. Toda vez que ocorria uma morte assim, ele era tomado por uma tristeza arrasadora, uma angústia sem tamanho, se sentia impotente diante de tanta barbárie.
Ao ouvir aquela notícia, Arlindo se levantou e foi até a janela para respirar melhor, pois estava sufocado. Foi então que avistou a certa distância uma grande favela pendurada num morro. Aquela imagem o deixou pensativo. Seria dali a pobre criança que se tornara alvo de mais uma bala perdida?
Envolvido em pensamentos, ouviu a secretária chamar pelo seu nome. Quando já estava se virando para ir até a sala do médico, caiu ao chão. Uma dor terrível invadiu seu peito, levou a mão direita ao seu lado esquerdo e sentiu o sangue quente escorrendo por um pequeno orifício.
Arlindo acabara de se tornar em mais uma manchete triste do próximo plantão de notícias e da primeira página dos jornais de um dia como tantos outros, com a vida em pânico e trevas.

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