Guaxupé, domingo, 28 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Até que o vento bata à sua janela

domingo, 23 de agosto de 2020
Até que o vento bata à sua janela

Sentia um certo frio nos ossos. O tempo estava estranho, parecia que uma grande tempestade estava por desabar a qualquer instante. Em tais circunstâncias, desperta uma vontade avassaladora de viajar por lugares onde ainda são possíveis a reflexão e a meditação. Trilhando por caminho tão convidativo é preciso entrar com mansidão no mais íntimo do ser.
Os dias eram cinzentos, fechados, a atmosfera pesada, o mundo ameaçava, com suas maldades, qualquer perspectiva de luz. O horizonte parecia distante e inatingível.
Estaria delirando ao ver um vale sem sol, onde ossos secos tilintam de frio na nebulosidade de dias escuros, onde um grande pássaro negro derrama escuridão com seus voos rasantes? Como abrir caminho entre nuvens tão carregadas? A tempestade se aproximava com sombras tenebrosas.
Em dias assim, é oportuno o refúgio nas grandes palavras. Sentia uma sede medonha, incontrolável, por novos horizontes. Era urgente um remédio eficaz, mesmo sabendo que nem ele dissiparia tantas nuvens. Além da sede, tinha fome de luz.
Como pode um alimento saciar, quando em tudo há escuridão? A carência de luminosidade arrasa a alma. Nas trevas, é inevitável a procura por algo iluminado que acene novos gestos. Se “navegar é preciso”, procurar também é preciso. E se “viver não é preciso”, como diz o poeta, procurar viver é preciso. Nessa busca, os milagres acontecem.  Assim, é possível que caia o véu do rosto da multidão anônima que vai cabisbaixa rumo a lugar nenhum.
A humanidade mostra o seu semblante secular, seja como o de uma criança lambuzada de chocolate ou como o de um homem que se esvai na fumaça de seu fumo, de seu vício, de sua vida. O grande poeta Fernando Pessoa não está restrito ao “tudo vale a pena se a alma não é pequena”! Estaria pessoando versos como um guardador de rebanhos? “Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de facto a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve notícia do fim.”
Ah, os ossos! Estava sentindo muito frio. Estaria com febre, delírio, ou seria apenas a intempérie do tempo? Nesse estado, a mente fervilha em versos e mais versos, neles passeiam ilustres poetas.  À frente, sempre Pessoa. “Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar. Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel”.
A janela da rua estava batendo na parede, havia ficado aberta… seria preciso fechá-la… Olhou o horizonte encoberto. Na penumbra, avistou a tormenta. À sua frente, vislumbrou uma luz se aproximando. Vinha de mansinho… chegou bem perto e abriu um grande livro que trazia consigo. Com voz acolhedora disse: “O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai…”
Não ouviu mais nada, mas se alimentou da mensagem. Numa viagem na melodia do vento acabou não fechando a janela, quando deu por si o som das buzinas trouxe de volta a realidade do mundo hostil.
Mas agora sente o sopro de uma brisa mansa. O vento que bateu à sua janela o reergueu, então segue alegre pelas distâncias da vida. Apesar da escuridão do mundo, sente a leveza das nuvens e a luminosidade das estrelas.
E assim prossegue, no vento consolador, a passos largos, caindo às vezes pelo caminho, mas sempre buscando o voo, rumo ao sol que há de chegar, pois não há tempestade que sempre dure nem dias nebulosos que nunca se vão.
Agora sente o sol…o vento suave tocando o rosto…
 
 

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