Guaxupé, quinta-feira, 28 de março de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Caminho de terra

sexta-feira, 6 de maio de 2022
Caminho de terra Imagem: Divulgação

A manhã de verão estava amena, o vento suave refrescava o rosto cansado da idade.

Sozinho, o homem estava pensativo dentro do veículo a percorrer a rodovia que conhecia desde o tempo quando o trânsito era tranquilo, sem a intensidade atual. Viajou horas e horas sem parar, até que entrou em território bem familiar, rodou por mais um tempo. Estava cansado, havia dirigido quase a manhã toda. A certa altura redobrou a atenção, então diminuiu a velocidade e entrou numa estradinha de terra.

Começou ali um revirar de páginas de sua memória. Cada detalhe do caminho era deslumbrado por seu olhar carente e triste. Logo adiante, encostou o carro debaixo de uma grande figueira, onde tantas vezes descansou e desfrutou de sua sombra acolhedora. Queria caminhar, andar a pé, tocar aquela terra que fazia parte de sua essência de vida. Tirou os sapatos e seguiu em frente. Pelo caminho, viu diversos pássaros voando de árvore em árvore, com seus trinados alegres, como se saudassem o visitante. Aquela festa inundou o seu vazio, tomado por uma emoção descomunal, engoliu em seco as lágrimas que se formavam por tão grande saudade.

Subiu e desceu por aquela estrada ladeada por grandes barrancos, tomados por um mato todo empoeirado, num cenário de abandono. O suor já marcava sua camisa quando resolveu tirá-la, queria sentir o sol na brancura pálida de sua pele. Havia décadas que não sentia aquele calor queimando o seu corpo.

Ia sem pressa, vagando por recordações que surgiam a cada passo dado naquele chão, cúmplice em tantas aventuras. Estava assim, pensativo, quando, ao fazer a curva da estrada, avistou o pequeno lago. Em seu silêncio, ainda se podia ouvir a criançada na algazarra de outrora. Via os moleques nadando e mergulhando como grandes peixes brincalhões. Não quis parar, talvez não resistisse ao ver, revelada naquela água, a imagem de um menino que se perdeu entre rugas e cabelos grisalhos.

Olhou para trás e viu as marcas de seus passos no pó do caminho. Por instantes, abaixou a cabeça, mas precisava avançar, pois não podia sair dali sem alcançar todo o passado.
Não precisou andar muito até chegar ao mata-burro, onde estava a velha porteira. Estava aberta, encostada no matagal que tomava conta do lugar. Ao tentar movê-la, ela rangeu chorona, como se reconhecesse aquelas mãos que tantas vezes galgaram as suas tábuas para que nela o garoto franzino se sentasse e se dependurasse no balançar do abrir e fechar da infância ensolarada. Desistiu, não queria tirá-la de seu sono, recostou-a novamente e prosseguiu, entrou mais fundo em seu passado.

Avistando a velha casa, uma tristeza maior invadiu sua solidão. O telhado havia desabado, algumas paredes ruíram e o mato encobria os escombros. Em meio ao abandono, notou que as janelas permaneciam fechadas, como se o último morador tivesse saído para nunca mais voltar. Um silêncio tumular pairava sobre toda aquela ruína.

Deu a volta e se sentou à porta da cozinha, de onde se avistava um grande terreiro. Embora coberto pelo mato, pôde vislumbrá-lo cheio de canteiros de verduras e legumes. Sentiu o cheiro de terra molhada, regada pelas mãos fecundas do velho plantador, seu pai incansável. De dentro da cozinha ainda ouviu sua mãe chamar para o almoço, sempre quente e apetitoso no aconchegante fogão à lenha.

Num ímpeto se levantou e foi até uma moita de espinheiro, algo lhe chamou a atenção. Era uma velha roda de carro de boi, já carcomida pelo tempo, apodrecida no passar dos anos, nela brotavam enormes cogumelos. Ah, o velho carro de boi! Seu rodar melodioso era ouvido a léguas de distância. Não tinha como evitar as lembranças de dias tão felizes, com o pai, a mãe, os irmãos, avós e todos os moradores daquela região. Bons tempos que, recordados, deixavam sua alma abatida com uma amargura nunca sentida. Ficou ali por horas, angustiado, revirando suas lembranças. Quando deu por si, a tarde já estava bem adiantada.

Do alto da serra, nuvens escuras começaram a se juntar. Sabedor do significado daquilo resolveu ir embora, pois não queria ser apanhado pelo temporal que viria, com certeza. Conhecia bem aquelas paragens. Teve que se apressar, a passos largos fez o caminho de volta. O tempo escureceu de repente e dava uma sensação de fim de mundo. Ouviu o pio de alerta de um pássaro, um canto triste como aquela escuridão. Chegando ao veículo, colocou a camisa e os sapatos, deu a partida e se foi.

Não, não quis dar nem uma olhada, sequer, para trás. Temia ser pela última vez. A chuva já dava seus primeiros pingos. Saiu da estradinha de terra e entrou na rodovia, acelerou cuidadoso, pois teria uma grande jornada de asfalto pela frente, de volta para o seu futuro.

Não conseguiu segurar as lágrimas que desciam pelas faces, chorou como um órfão sozinho no mundo. O temporal ameaçador, enfim, desabou...
 

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