Guaxupé, domingo, 28 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Os pardais meus de todos os dias

sábado, 8 de agosto de 2020
Os pardais meus de todos os dias

O homem de seis décadas de caminhada, que também poderia ser um garoto de uns seis anos, no florescer de suas travessuras, certo dia, numa praça qualquer, saiu ao alpendre de suas memórias e se assentou no velho banco de madeira, onde sempre ficava a ver o mundo a girar ao seu redor. Me chamou para tomar assento ao seu lado e me contou parte da pulsação de suas lembranças.
Sou um ser repleto de recordações, mas algo me acompanha desde o tempo de criança, meus velhos e bons amigos pardais. Sim, os pardais, sem eles, meu mundo não teria encanto nenhum! Todos os dias acordo com a cantoria deles. Embora, sejam considerados como praga por muita gente, os pardais, que estão em todo lugar, têm um significado muito importante para mim. Desde o terreiro de minha infância essas pequenas aves me acompanham, mesmo nos períodos em que estive trancafiado na solidão de algum apartamento elas se fizeram presentes nas minúsculas áreas de serviço ou mesmo no abrir e fechar das janelas cotidianas.
Para mim, esses pássaros são o povão de sua espécie, o proletariado das asas. São criaturinhas simples, sem nenhuma plumagem exuberante, sequer são bons de bico como os tucanos, ciscam daqui e dali em busca do alimento para a sua sobrevivência, vão dando os seus pulinhos por aí na luta para se manterem vivos. Sua cantoria não chega a ser um belo gorjeio, é mais um trinado de alegria, uma algazarra de felicidade por onde passam. Seu voo não é nada panorâmico, poderia se dizer que dá para o gasto. Os pardais são como gente humilde, sem maquiagem e sem adereços, sobrevivendo aqui e ali, em qualquer lugar. 
Os adeptos de algum tipo de sofisticação detestam ou, simplesmente, desprezam ou ignoram a simplicidade. Eu amo o simples, o humilde, o anônimo, o discreto, enfim, todos os seres que por terem uma vida considerada sem nenhuma importância se tornam grandiosos e belos, pois enxergam além de si mesmos. 
A casa onde hoje moro não tem quintal, mas pequenos corredores, mesmo assim meus velhos amigos vêm me despertar todos os dias, fazendo uma festa bem barulhenta.
Sinto nessa farra de gorjeios um agradecimento, uma oração por mais um dia de vida. Parecem me dizer: “Acorde, venha viver mais um dia que nos foi dado de presente, venha ver como a vida é maravilhosa, sinta a luz do sol que acaba de se levantar, venha logo”!Sim, apesar do mundo estar tomado por trevas assustadoras, espalhadas por seres tidos como humanos, a vida é toda iluminada, cheia de graça e bençãos divinas. 
Em certos dias ao acordar e após agradecer, como sempre faço, por ser abençoado por estar vivo, viajo num voo rasante em minhas memórias e mergulho fundo com meus amiguinhos pardais na minha infância mineira. E lá vamos nós para a velha casa, com quintal enorme, todo verde, cheio de árvores e pássaros! Naquele tempo e lugar, os pardais não estavam sozinhos, tinham a companhia de bem-te-vis, sabiás, pintassilgos, canarinhos, sanhaços, pássaros-pretos, tizius, beija-flores, maritacas, periquitos, papagaios e até corujas. Ah! Eram tantos pássaros florindo meus dias gerais! Floriam todas aquelas árvores: mangueiras, pitangueiras, abacateiros, laranjeiras, mexeriqueiras, amoreiras, limoeiros, figueiras e até pés de cidra e de café.
Tudo aquilo num grande quintal que já não existe mais. Naquele tempo o local era de uma velha tia, hoje está em mãos estranhas e toda aquela explosão de vida está sepultada sob construções cinzentas e vazias, sem o pulsar de tanta alegria.
Mesmo assim, ainda hoje posso sentir o aroma daquele paraíso plantado na minha infância. Vejo os pequenos pardais entrando pelas janelas e porta da cozinha, indo comer os grãozinhos de arroz que minha mãe deixava cair pelo chão, talvez de propósito, para alimentar aqueles bichinhos. Vejo também as marcas dos seus pezinhos na areia, os seus banhos refrescantes de terra nos dias de calor, era estranho aquilo, esparramavam terra pelo corpo com suas asas, pareciam se deliciar numa grande brincadeira, e o andar aos pulinhos comendo bichinhos e bebendo água fresca numa sombra de árvore. Em dias muito quentes, ficavam com os biquinhos abertos e com o peito batendo forte, arfantes. Quando algum filhotinho, desprovido ainda de penas, caia do ninho instalado na cumeeira da casa ou no alto de alguma árvore, eu corria logo a socorrer o coitadinho. Tentava dar água e grão de arroz para que continuasse vivo. Que nada, ele sequer abria os olhinhos! O jeito era subir e colocá-lo de novo no ninho, junto com seus pais, já alvoraçados. Era a grande boa ação do dia!
Que bom vê-los ainda hoje saltitantes por aí, num tititi que me traz belas recordações, como velhos amigos numa visitinha, buscando saber como estão as coisas, a vida, o meu mundo em outras terras! Veja, eles estão ao nosso redor, sempre alegres!
Nesse encanto de lembranças e saudades, no êxtase de sobrevoar minha infância com o despertar dos pardais, os dias me parecem bem mais sorridentes.
Recordar o esplendor de vida daquele aconchegante quintal que me fez gente, me leva a abrir a janela e saudar meus velhos companheiros. Sim, são outros, mas também são os mesmos de sempre, com os mesmos trinados, numa mesma algazarra! Sim, a vida é bela!
Com um semblante tomado de emoção, o homem, ou menino, se levantou do velho banco e tirou do bolso uma surrada carteira, dela pegou um recorte de revista e me mostrou, era a imagem de muitos pardais. São os meus amigos, os pardais meus de todos os dias, disse contente. Em seguida, dobrou aquela ilustração, já gasta, com uma coloração marrom, deveria carregá-la há anos consigo, e saiu caminhando, lentamente, como um homem de seis décadas.
Após alguns passos, parou e se voltou me dizendo: quando eu não mais existir, se lembre de mim como alguém que amava os pardais. E seguiu adiante, por uma rua vazia, cinzenta, de um bairro melancólico de cidade grande.
Uma vez mais se voltou e me acenou com um sorriso de passarinho, como um menino feliz a voar na algazarra verde de seu quintal.

João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé.
Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com/

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