Guaxupé, segunda-feira, 29 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

SEM MAIS NEM MENOS

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021
SEM MAIS NEM MENOS

Sem mais nem menos, seguia pelo caminho diário da mesmice de uma rotina que escraviza, prende, dilacera e vai matando silenciosamente, como se tudo não fosse além de momentos apressados, vividos numa correria desenfreada em tempos dirigidos por máquinas que vão retroescavando os dias rumo a lugar nenhum, quando, sem mais nem menos, algo em sua mente jogou-o contra o muro, fez cair o véu da estupidez e do alto de suas atribuições e tribulações, notou o ser idiota, bestial e desumano em que se tornou ao longo dos anos, se achando peça útil, o que não condiz com a sua real essência de ser capaz de sonhar e passear por versos imagináveis de poemas que jamais verão a luz que acena no fim de um túnel qualquer, no cotidiano cinzento de mil assombros que faz relembrar o início da caminhada, lá pelas bandas das montanhas gerais, quando um rapazinho magricela tinha a audácia de querer mudar o mundo, sentado no banco da praça da igreja de sua aconchegante cidadezinha, sob o sol gostoso do final de tarde, planejava com amigos, a começar por ali, a libertar a cidade das garras selvagens do capitalismo, era preciso posicionar o comando da guerrilha no morro mais alto do lugar, tomar os prédios de todos os poderes, bloquear os acessos e fronteiras e, principalmente, prender o grande coronel que mandava e desmandava, fazendeiro de latifúndios a se perder de vista, o plano revolucionário ficou apenas nas ideias, não seguiu adiante nem um quarteirão além daquela praça, ninguém soube dele além daquele pequeno grupo, mas, com certeza, era alimento que ajudava a fortalecer a esperança daqueles jovens, estimulava os seus encontros, quando se discutia a situação sombria do país, eram anos de chumbo da ditadura militar, o grito por liberdade era sufocado em porões tenebrosos e, ao mesmo tempo, germinava no jardim da praça, os amigos trocavam livros, jornais e revistas, falavam a linguagem de Karl Marx, Pablo Neruda, Garcia Lorca, Thiago de Mello, Pasquim, e de tantos outros, as ideias fervilhavam, e foi assim, sem mais nem menos, que ele se viu perambulando pelos paralelepípedos da madrugada, com amigos leais, debaixo do sereno, filosofando e construindo versos pelo caminho, e, com muita paixão e violão em punho, fazendo serenatas para as amadas, que sequer queriam saber da existência de suas vidas, não foram poucas as vezes que tiveram de sair correndo, fugindo de pais bravos, que almejavam um futuro melhor para as suas belas e formosas filhas, muitas delas, depois de tantas escolhas, acabaram sozinhas, murchas e sem brilho, como se fosse uma vingança do destino a favor dos enamorados rejeitados, os sonhadores daquele tempo entraram vida afora em busca de novos horizontes, muitos se perderam por aí, a maioria perdeu o sonho de um mundo melhor, outros se deram bem com o capital e continuam correndo atrás do dinheiro, outros não se perderam, mas estão completamente perdidos, sem rumo, sem ideologia e, pior, sem sonho algum, quase todos casaram, descasaram, construíram e destruíram famílias, sobreviveram ou acabaram com a própria vida, por fim, daquele passado obscuro que sufocava o grito por liberdade, saiu uma multidão desnorteada, que está por aí, a esmo, de quatro, de cócoras, de olho nas vitrines do shopping, se lambuzando no MC Vida Besta, ou assistindo novelas e o Jornal Nacional, vai sobrevivendo, vegetando, enterrando a própria existência debaixo de um minúsculo cobertor rasgado em noites de desassossego poético, inerte, sem qualquer possibilidade de luz, apesar do advento de um falso lampejo de esperança no horizonte planaltino, um engano, a esperada manhã ainda não raiou, a incoerência, covardia e traição jogaram poeira nos olhos dos que acreditaram no rumo que poderia levar a nação a dias melhores, com um lugar ao sol para todos, ilusão, no desalento, eu, cercado pela solidão em plena madrugada, diante da tela vazia do computador, tive que buscar por um socorro oportuno, paulomendescamposmente, de repente, assim, sem mais nem menos.

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