Guaxupé, sábado, 20 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Eta vida besta, meu Deus!

domingo, 6 de dezembro de 2020
Eta vida besta, meu Deus!

O homem estava frio, apático e sem luz, com o semblante abatido. O inverno na cidade em que morava era feio, concreto, mudo e sem poesia. O homem estava carente de novos ares. 
Um dia decidiu fazer o que poderia ser considerado uma loucura ou besteira por qualquer um ao seu redor. Resolveu que tiraria aquele dia para sair da rotina da vida besta que estava levando. Ainda era bem cedo quando se levantou e foi até a rodoviária. Comprou a passagem, entrou no ônibus e viajou. Viagem curta, que não chega a duas horas, mas o suficiente para atravessar a fronteira e alcançar as suas montanhas gerais. 
Assim que chegou à cidadezinha já respirou melhor, o ar era leve e parecia ir fundo no peito. Uma sensação de vida abrindo caminhos. O lugar era pequeno, bem aconchegante. Entrou numa ruazinha de terra, uma descida bem acentuada e depois um morro de tirar o fôlego. Fez o trajeto bem devagar, curtindo o mover dos próprios passos. 
Casas simplórias pareciam sorrir com suas janelas abertas. Nos quintais, árvores frutíferas agasalhavam pássaros em festa. Debaixo de uma mangueira, um homem acenou, desejando um bom dia. 
Assim que chegou ao centro da cidadezinha, avistou a praça, uma bela e encantadora praça. Aquele lugar fez com que se lembrasse de sua cidade natal, bem longe, do outro lado de outras tantas montanhas gerais. A sensação de conforto era a mesma que sentia quando se sentava nos bancos da praça de seus longínquos anos dourados. 
Estava muito frio, um ventinho gelado batia no rosto, mas, ao mesmo tempo, um solzinho gostoso, firme, aquecia qualquer semblante cabisbaixo. Escolheu um banco próximo do chafariz e ficou apreciando a calmaria que aflorava por toda parte. 
As pessoas passavam vagarosas rumo aos seus afazeres, pareciam seres desfilando pela passarela de outro mundo. Tempo ali era algo inexistente. Tudo seguia o ritmo natural da vida, sem a pressa esmagadora do cotidiano de tantos lugares infernais. 
Do outro lado da praça, um grupo de colegiais, de uniforme, conversava e dava boas risadas, não havia algazarra, palavrões, "ruído musical" insuportável e falta de educação. O comportamento daqueles estudantes parecia de tempos passados. Seria verdade aquela cena? Seria possível ainda hoje? Naquele lugar ainda prevalecia uma existência sadia. 
Estava ali absorto, respirando a pureza do ar, quando se aproximou uma cigana com suas roupas coloridas e perguntou se podia ler a mão para prever o futuro. A sua resposta foi tão consistente que ela nem insistiu, como sempre faz. Por que haveria de querer saber de fumaças fétidas e correria desenfreada dos dias? Não, aquela mulher não iria quebrar o encanto daquele momento tão sublime, desvendando supostos abismos nas encruzilhadas das linhas de sua mão. Absolutamente, fez bem em não permitir tamanha invasão de privacidade. Se abismo havia, era para ser vencido por ele, um sobrevivente em tempos cinzentos. 
Passado aquele inoportuno contato, voltou os olhares para a praça. Em alguns bancos, idosos proseavam despreocupados, eram senhores que se orgulhavam de seus cabelos brancos. Homens de brio e de palavra honrada. 
Ficou pensativo com a imagem daquele lugar. Estaria mesmo ali? Seria possível a existência de um lugar como aquele, onde se respirava a fluidez serena da vida? Por várias vezes, abriu e fechou os olhos. Sim, ele estava mesmo ali, não era nenhum delírio seu. 
Estava se sentindo tão bem, a leveza de uma alegria inexplicável fazia seu coração bater mais forte, cheio de esperança. Ah, se pudesse, ficaria para sempre sentado naquele banco da praça! 
Num dado momento, tirou da bolsa o livro de poesias que havia levado consigo. Leu os versos na página que abriu aleatoriamente. Poema bem conhecido e lido várias vezes por ele, mas nunca havia sentindo aquele incômodo. Ficou contrariado com o poeta maior. Releu novamente. 
"Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham.  Eta vida besta, meu Deus." Não, não podia ser besta a vida de uma "Cidadezinha Qualquer", de Carlos Drummond de Andrade. 
Besta é a existência em grandes cidades, que estão fora do controle devido à insensatez daqueles que levam uma vida medíocre e agem como irresponsáveis pela própria destruição. Tanta desumanidade não é vida. 
Depois de horas viajando naquela praça, se levantou e tomou o caminho de volta. Ao retornar, já bem próximo da cidade em que morava, a rodovia estava parada, o trânsito insuportável. Sentiu o cheiro azedo da poluição sempre presente. Tristonho novamente, em meio a um turbilhão de veículos, ônibus abarrotados, ouviu ruídos de motores e buzinas estridentes, teve uma sensação de impotência diante daquele caos. 
Barracos entre esgotos, mulheres entre miséria, fome, violência, morte. Um homem cai baleado. Um menino vai morrer. Um jovem vai matar. Correndo... a cidade sangra. 
Parado no semáforo, ele observou numa praça toda suja, descuidada, tomada pelo mato, jovens e até crianças de rua usando drogas e mendigos e vadios deitados em seus bancos quebrados. Uma cena de final dos tempos. 
Em sua mente, os versos do poeta gritavam. Então, repetiu silenciosamente, da poltrona do ônibus em que estava: "Eta vida besta, meu Deus".

Comente, compartilhe!