Guaxupé, quinta-feira, 25 de abril de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Abandono em tempo natalino

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020
Abandono em tempo natalino

O trânsito naqueles dias estava muito intenso, pois já se aproximava o Natal e as pessoas buscavam, desesperadamente, comprar a felicidade exposta nas vitrines de um mundo tomado pelo consumismo desenfreado.
Um garoto, de mais ou menos onze anos de idade, estava com outros meninos em um semáforo de uma avenida, fazendo malabarismo por uns trocados de algum motorista sensibilizado por aquele apelo.
Estava apresentando o seu número quando viu em um carro um senhor já de certa idade com cabelo e barba de uma brancura bem artificial e com uma sufocante roupa vermelha em pleno verão. Sim, se tratava de Papai Noel.
Meio temeroso, se aproximou e iniciou uma breve conversa. "Olá Papai Noel! Muito trabalho?". O velhote, aparentando um certo desconforto, disse que estava indo para mais um dia de trabalho em um shopping da cidade. "Lá vou eu fingir de alegre em mais um dia de batente". O garoto tentou mostrar solidariedade. "Mas, pelo menos dá para faturar um bom dinheiro nessa época do ano. Fiquei sabendo que estão pagando uma nota preta para Papai Noel". O homem deu um sorriso amarelo. "É, mal dá para pagar as contas acumuladas. E depois, o que fazer com apenas uma aposentadoria miserável?" Quando o garoto ia tentar alguma palavra de conforto, o semáforo ficou verde e o carro deu uma arrancada brusca e foi embora.
O Papai Noel, que não deu nem uma moedinha, deixou o garoto pensativo ao longo daquele dia. "Por que o mundo é tão duro para tantas pessoas?" Assim que o sinal se fechava, lá estava ele apresentando o seu número. Suas três bolinhas deslizavam de suas mãos para o alto, enquanto as pessoas fechavam o vidro dos carros cheios de presentes de Natal.
Numa de suas apresentações, perdeu a noção do tempo e não percebeu que o sinal já estava aberto. As buzinas dos veículos explodiam em seus ouvidos. Num ato de puro reflexo, saltou para a sarjeta para não ser atropelado. Na rapidez do movimento, uma bolinha caiu e rolou para debaixo dos carros. Quando o sinal ficou vermelho, percebeu que a bolinha havia sido estourada pelas rodas dos veículos. Ficou com ela nas mãos sem saber o que fazer. Para ele, não seria justo realizar o número com apenas duas bolinhas. Logo, um colega se aproximou e, num gesto solidário, ofereceu outra bola. "Eu te empresto uma, pois sempre carrego uma de reserva comigo". O garoto sorriu e prometeu devolve-la depois.
Nos momentos em que os carros deslizavam pelo asfalto, ele ficava sentado na sarjeta, todo pensativo. E como menino cheio de esperança pensou que no ano novo precisava mudar de vida. Sentia que era preciso entrar em uma escola de qualquer jeito, mesmo sabendo que dependia do sorteio de vagas. Se não fosse sorteado novamente, como já havia acontecido em outros anos, deveria ir com sua mãe até os palácios das autoridades competentes para implorar por uma vaga na escola. Era preciso determinação, pois de nada iria adiantar ficar se lamentando e pedindo esmola para sempre na rua, tinha que fazer valer os seus direitos, pensava.
Ainda era uma criança, mas a crueldade do mundo lhe proporcionou um amadurecimento precoce. Não esperava por presentes de Papai Noel no Natal, pois tinha consciência de que tudo era fantasia. A realidade dura dos seus dias estampava bem em seu rosto o que era a sua vida.
Logo o dia de Natal chegaria e todas aquelas pessoas que passavam com seus carros velozes estariam trocando presentes entre abraços e beijos, tomadas pelo tão falado espírito natalino. Depois iriam deliciar a tão esperada e farta ceia natalina. A bebedeira traria uma falsa alegria para os que buscam um motivo qualquer para festejar. A grande maioria nem se lembraria da verdadeira razão do Natal.
Cabisbaixo, sentado na sarjeta, uma amargura tomou o seu coração. Tinha anoitecido, sob a luz amarelada do poste, o garoto pensou em sua mãe doente e em seus quatro irmãozinhos lá no barraco da favela, sem quase nada para comer. Pai? Nunca soube o que era ter um. Tentou impedir, mas não conseguiu, duas lágrimas rolaram de seus olhinhos tristes e inundaram a face da noite. Estava assim, quando chegou um fiscal municipal e o colocou para correr.

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