Guaxupé, quinta-feira, 28 de março de 2024
João Júlio da Silva
João Júlio da Silva PAPOENTRELINHAS João Júlio da Silva é jornalista em São José dos Campos (SP), natural de São Pedro da União e criado em Guaxupé. Blog https://papoentrelinhas.wordpress.com

Em busca da liberdade

domingo, 13 de dezembro de 2020
Em busca da liberdade

No começo não era assim, mas depois apenas desprezo. Antes despertava toda atenção, com o tempo passou a ser ignorado, ficou abandonado pelos cantos. A indiferença foi corroendo a sua existência até que a solidão se instalou e se fez a única companhia no avançar dos dias.
Outrora, vivia livre no seu caminhar, um aventureiro da alegria. Um dia ela chegou e juntos iniciaram o que seria um sonho de felicidade. O futuro diria que não seria bem assim. No princípio, cada gesto era ornado com amor e tudo parecia indicar para a direção de um jardim de outro mundo. Tratado como rei, manifestava a sua satisfação nos afagos carinhosos. Mas, tropeços cotidianos deterioraram o frutificar dos passos iniciais. E foi assim que ficou aprisionado na escuridão cotidiana daquelas nuvens que ameaçam desabar a qualquer instante.
Sufocado, sentindo uma falta de ar desmedida, foi arrastando as correntes por onde já nem podia ir, pois sequer se movia do seu cárcere. Com o olhar jogado na distância de antigos passos, parecia alheio ao próprio sofrimento. Qualquer um poderia muito bem imaginar que estava acometido pela loucura e que seu fim não tardaria, mas seu anseio por liberdade o mantinha vivo.
Demorou, mas o tão esperado dia acabou chegando. Sua redenção estava próxima, dependia apenas de sua atitude. Depois de tanto tempo sem saírem juntos, estavam numa praça caminhando lado a lado, como se buscassem o nada em lugar algum. Ela exercitava o corpo e ele a sua existência. Sentiu que sua hora havia chegado quando ela resolveu dar um telefonema. As portas pareciam se abrir para a sua liberdade. Virada de lado, alheia a sua presença insignificante, ela falava ao telefone.
Aquele era o momento exato de partir, tomar um rumo qualquer e saltar fora daquela vida sem sentido. Olhou para ela e depois para a grande avenida que se estendia bem à sua frente. Era dar o primeiro passo e adeus sofrimento. Estava prestes a tomar essa iniciativa salvadora, depois sairia por ruas e ruas até o fim do mundo. Quando já estava para ir, algo incompreensível o fez olhar mais uma vez para ela. Estava tudo perdido, não teve coragem de deixá-la daquela maneira, plantada ali na praça. E não foi, ficou do seu lado. Cabisbaixo, parecia se convencer de que o momento ainda não era aquele e que outra ocasião surgiria para que seu plano de liberdade se tornasse realidade.
Voltaram para casa, ela com sua indiferença peculiar e ele numa melancolia arrastada a custo. Foi para o seu canto e lá ficou como se estivesse morto. Poderia estar bem longe se tivesse dado o primeiro passo para a sua liberdade. O consolo bem que podia ser a possibilidade de outra chance num dia qualquer. Aquela noite foi terrível, passou o tempo todo acordado, olhando o nada, talvez lamentando o seu infortúnio e relembrando seu passado.
Os dias eram bons no tempo em que se aventurava livre pela vida, vadiando pelas ruas, virando umas latas aqui, outras ali e mais outras acolá. Gostava de caminhar entre a multidão, sempre encontrava um gesto de humanidade que mantinha viva a sua condição de cão sem dono. Era um vira-lata, mas era livre.
Mas, um dia ela surgiu de repente, parou o carro e toda piedosa o levou para casa. Comprou para ele uma casinha bem bonita, rações e mais rações saborosas. Cuidou dele como se fosse um achado precioso. Curou suas feridas e passou a tratá-lo como um grande companheiro. Até deixava que dormisse com ela em sua cama.
Ela era uma bela mulher e vivia sozinha naquela casa enorme cercada por todo tipo de segurança eletrônica. Mesmo assim, não fosse ele, um dia um ladrão por pouco teria adentrado na propriedade. Ao fazer um estardalhaço numa suposta ferocidade canina de vira-lata, não restou alternativa para o ladrão, a não ser uma desabalada correria. Virou herói para ela. Os dias corriam lindos e maravilhosos, quando ela retornava do trabalho, era aquela festa. Eram beijos e lambidas que não acabavam mais.
O tempo foi passando e, como se sabe, o pior acabou ocorrendo. Ele foi esquecido acorrentado no seu canto. Ela quase já não parava em casa, viajava muito. Quando chegava, sequer olhava para ele. Eram dias e dias no seu espaço já imundo, passando fome, pois não havia quem colocasse sua ração. Vez ou outra, ela se lembrava dele e dava um jeito de melhorar suas condições, mas fazia tudo sem dedicação alguma. Latir estava proibido quando ela estivesse presente. Se desobedecesse, corria o risco de levar umas chineladas. Enfim, o seu mundo desabou.
Mesmo com todo o sofrimento e maus tratos recebidos, ele se manteve fiel a ela naquele dia em que poderia ter partido rumo ao encontro de sua perdida liberdade.
Mas, as oportunidades acabam surgindo, e numa outra ocasião ele se viu na possibilidade de deixar aquela vida. Um dia ela conversava na entrada de sua casa com uma amiga que estava num carro. Como havia deixado o portão da casa entreaberto, seria fácil sair por ali sorrateiramente, entrar debaixo do carro parado e atravessar a rua. Para ajudar, ele estava solto, ela havia tirado a corrente naquela manhã, talvez pretendesse fazer uma caminhada com ele livre, como naquele dia na praça. Então, era só sair.
E foi isso que fez, ela nem percebeu nada. Já estava na calçada do outro lado da rua, era só seguir adiante. O fim estava a um passo. Mas, de repente, mais uma vez, assim como havia ocorrido na outra oportunidade, algo inexplicável fez com que parasse e olhasse para ela. Ficou perturbado. Apesar de tudo, gostava dela. Seu olhar era triste, muito triste...

Comente, compartilhe!