Guaxupé, sábado, 20 de abril de 2024
Cairbar Alves de Souza
Cairbar Alves de Souza Cantinho Mineiro Advogado e Escritor

Declaração de bens

quinta-feira, 20 de maio de 2021
Declaração de bens

Aproveitando a fase de entrega da declaração do Imposto de  Renda, iremos reproduzir uma crônica do jornalista Hélio Fraga, em outubro/84, sobre o tema em homenagem à querida contabilista Onair Donizete Justino, a “rainha do Imposto de Renda de Guaxupé”.

“O pai moderno, muitas vezes perplexo e angustiado, passa a vida inteira correndo como louco em busca do futuro e esquecendo do agora. Nessa luta, renuncia ao presente. Com prazer e orgulho, a cada ano, preenche sua declaração de bens para o Imposto de Renda.
Cada nova linha acrescida foi produto de muito trabalho. Lotes, casas, apartamentos, sítios, casa de praia, automóvel do ano – tudo isso custou dias, semanas, meses de luta, mas ele está sedimentando o futuro de sua família. Se partir de repente, já cumpriu sua missão e não vai deixá-la desamparada.
Para ir escrevendo cada vez mais linhas na sua declaração de bens, ele não se contenta com um emprego só – é preciso ter dois ou três; vender parte das férias, levar serviços para casa.
É um tal de viajar, almoçar fora, fazer reuniões, preencher a agenda – afinal, ele é um executivo dinâmico, não pode fraquejar.
Esse homem se esquece que a verdadeira declaração de bens, o valor que efetivamente conta, está em outra página do formulário de Imposto de Renda – naquelas modestas linhas, quase escondidas, onde se lê: relação de dependentes. São os filhos, novos demais, que não estão interessados em propriedades e no aumento de renda. Eles só querem um pai para conviver, dialogar e brincar. Os anos passam, os meninos crescem, e o pai nem percebe, porque se entregou de tal forma à construção do futuro, que não participou de suas pequenas alegrias; não os levou ou os buscou nos colégios; nunca foi a uma festa infantil, não teve tempo para assistir  à coroação de sua filha como Rainha da Primavera. Um executivo não deve desviar sua atenção para essas bobagens. São coisas para desocupados.
Há filhos órfãos de pais vivos, porque estão “entregues” – o pai, para um lado; a mãe para o outro, e a família desintegrada, sem amor, sem diálogo, sem convivência que solidifica a fraternidade entre irmãos, abre caminho ao coração, elimina  problemas e resolve as coisas na base do entendimento. Há irmãos crescendo como verdadeiros estranhos, que só se encontram de passagem em casa. E para ver os pais, é quase preciso marcar hora.
Depois de uma dramática experiência pessoal e familiar vivida, a mensagem que tenho para dar é: não há tempo melhor aplicado do que aquele destinado aos filhos.
Dos 18 anos de casado, passei quinze absorvidos por muitas tarefas, envolvido em várias ocupações e totalmente entregue a um objetivo único e prioritário: construir o futuro para três filhos e minha mulher. Isso me custou longos afastamentos de casa; viagens, estágios, cursos, plantões no jornal; madrugadas no estúdio de televisão. Uma vida super agitada, tormentosa e apaixonante, na dedicação à profissão – que foi na verdade, mais importante do que minha família.
Agora, estou aqui com o resultado de tanto esforço; construí o futuro, penosamente, e não sei o que fazer com ele, depois da perda de Luiz Otávio e Priscila.
Do que vale tudo que juntei, se esses filhos não estão mais aqui, para aproveitar isso com a gente? Se o resultado de 30 anos de trabalho fosse consumido agora por um incêndio e, desses bens todos, não restasse nada mais do que cinzas, isso não teria a menor importância; não ia provocar o menor abalo em nossa vida, porque a escala de valores mudou e o dinheiro passou a ter peso mínimo e relativo em tudo.
Se o dinheiro não foi capaz de comprar a cura de meu filho amado que se drogou e morreu: não foi capaz de evitar a fuga de minha filinha, que saiu de casa e prostitui-se, e dela não tenho mais notícias, para que serve? Para que ser escravo dele?
Eu trocaria – explodindo de felicidade – todas as linhas de declaração de bens por duas únicas que tive de retirar da relação de dependentes: os nomes de Luiz Otávio e de Príscila. E como doeu retirar essas linhas na declaração de 1986, ano base 1985. Luiz Otávio morreu aos 14 anos e Priscila fugiu um mês antes de completar 15.

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